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«Temos de reintegrar o Homem na natureza», alerta Paulo Finuras

4 de Novembro, 2020

Acaba de ser publicado “Da Natureza das Causas: Psicologia Evolucionista e Biopolítica” (Edições Sílabo). Trata-se de uma peça mais no mosaico que Paulo Finuras vem construindo, dedicadamente, há anos.

Esta nova peça é dedicada à psicologia evolucionista, um ramo vibrante e desafiante das ciências comportamentais.

A abordagem tem os seus críticos, inevitavelmente, mas é desafiante e provocadora; uma vez explorada não pode ser simplesmente esquecida.

Recordo-me há uns anos de ter lido “Managing the Human Animal”, de Nigel Nicholson, citado neste livro. A sua ideia é poderosa: os humanos tiraram-se da Idade da Pedra, mas não tiraram de si a Idade da Pedra.

Entrevistado por João Paulo Feijoo, seu prefaciador, Paulo Finuras ajuda-nos a descodificar a natureza das causas. A descobrir para nos descobrirmos.

Fala-nos um pouco do teu livro: que importância tem, nos tempos que correm, uma abordagem do comportamento humano na perspetiva evolucionista?
Este livro é o terceiro de uma série que começou em 2015 com o “Primatas Culturais”, seguindo-se o “Bioliderança” e agora o “Da Natureza das Causas”. Resulta da compilação de investigações que tenho feito e que se traduzem em artigos publicados em revistas, sites e jornais científicos e que organizo depois no formato de livro. Fi-lo não só porque penso que o paradigma evolucionista pode integrar as várias ciências sociais e porque saltei da sociologia para a psicologia evolucionista insatisfeito com as respostas (ou falta delas) sobre o comportamento humano. E finalmente, porque existe um enorme vazio na língua portuguesa neste domínio científico.

Como refiro no prefácio – que tive a honra de me teres convidado a escrever – as teses da psicologia evolutiva ainda estão longe de uma aceitação generalizada, em virtude da clivagem histórica entre as ciências “naturais” e as ciências “sociais”. Que comentários é que isto te merece?
Infelizmente e como digo no livro as ciências sociais cometeram um enorme equívoco ao não se apoiarem no conhecimento já produzido pelas ciências da vida, acreditando que retirando o Homem da natureza o podiam entender melhor. É um erro gigantesco. Temos de reintegrar o Homem na natureza e encapsular a biologia do vivo no sujeito ou não vamos entendê-lo.

Não achas que um leitor menos atento pode ficar com a impressão de que os nossos comportamentos são pré-determinados? Se eles estão inscritos nos nossos genes, onde está o livre arbítrio? Será que podemos falar de comportamentos racionais, no sentido de que obedecem a uma decisão ponderada de forma analítica e orientada por valores éticos?
Há muito pouca clarificação sobre isso. Deixa-me tentar iluminar um pouco a questão, que é muito pertinente. Os genes só se expressam num dado ambiente e não no vazio. A questão é que basicamente temos três tipos de comportamentos. Aqueles em que a influência genética é maior do que a influência cultural (ambiente), aqueles em que a influência cultural é maior do que a influência genética e finalmente aqueles em que há um equilíbrio entre o inato e o adquirido. Mas existem sempre as duas vertentes. A psicologia evolucionista não nega o adquirido (pelo contrário) mas não podemos pensar que o adquirido existe sem a influência da biologia. O predomínio do sexo masculino em matéria de liderança é um bom exemplo e falo disso no livro.

Além da psicologia evolutiva, a tua obra e a tua atividade académica e profissional estão também muito ligadas ao tema da interculturalidade. Como vês a relação entre os dois domínios?
Boa pergunta. Vejo-a como absolutamente complementar. A cultura é também a nossa natureza e um meio de resolver problemas adaptativos coletivos. Durante mais de 20 anos a minha relação com o Prof. Hofstede (que como sabemos faleceu em Fevereiro deste ano) ajudou-me a ter uma perspetiva do comportamento coletivo, porque a cultura tem a ver com o coletivo e não com o indivíduo isoladamente. Aliás, a diversidade cultural segue a linha da diversidade biológica da vida. As dimensões da cultura são uma janela para a forma como os grupos humanos (até às nações) resolvem problemas comuns que são uma pressão adaptativa e seletiva, como a questão da aceitação da desigualdade, a importância do “Eu” versus o “Nós”, a questão da competição versus a cooperação, a relação com a incerteza e o tempo e o controlo dos impulsos naturais. Está lá tudo.

Centremo-nos no que diz respeito ao comportamento organizacional. Numa perspetiva evolucionista, o trabalho em equipa é algo que define a nossa espécie: sobrevivemos e evoluímos como caçadores recolectores graças à nossa propensão para a cooperação. Mas quando analisamos a organização do trabalho, o trabalho em equipa ainda parece ser muitas vezes a exceção e não a regra. Vemos inúmeras funções desenhadas para serem exercidas individualmente, pobres em interação, em que a cooperação parece ser deliberadamente evitada como fonte de perturbação. Porquê esta aparente aversão àquele que devia ser o nosso “modo natural” de trabalho?
Talvez porque as organizações com as suas hierarquias e os seus interesses individuais em termos de empreendimentos se sobreponham à nossa psicologia natural, uma vez que são uma novidade à escala evolutiva. Existe uma relação de dependência e de subordinação que é uma novidade. As empresas não surgem como movimentos espontâneos coletivos. Resultam de empreendimentos cuja origem é a defesa dos interesses de quem os inicia. Ou talvez também porque há muito desconhecimento do chamado efeito de incompatibilidade justamente entre a nossa psicologia natural e o novo ambiente evolutivo, e muitas coisas acontecem como acontecem por causa desse desconhecimento. No fundo as empresas não são o modo “natural” de trabalho como o eram a caça e a recoleção. São um novo modo de produção numa nova escala – ou seja, um novo desafio evolutivo – e o nosso cérebro da Idade da Pedra está ainda a aprender a lidar com este novo ambiente. Vê o caso da digitalização e do mundo virtual: são tudo aquilo a que chamamos “mismatchs adaptativos”.

Quando o teletrabalho parece estar a tornar-se parte da “nova normalidade”, não estaremos perante um formidável obstáculo ao trabalho em equipa? Sabemos que mesmo antes do desenvolvimento da linguagem a nossa evolução foi moldada pela presença física dos nossos semelhantes, pela interação visual, até mesmo pelos cheiros. Como é que vamos conseguir adaptar-nos à privação dessa presença física?
Penso que esse é um dos grandes desafios e uma das novas pressões evolutivas e talvez aqui a palavra chave seja a Confiança, que é um tema sobre o qual me debruço e investigo há mais de dez anos. A confiança – que tem bases biológicas e evolutivas, claramente – é um dos grandes trunfos para a adaptação ao novo mundo (de resto sempre foi). Quem conseguir produzi-la terá vantagens inegáveis, sobretudo nas empresas. Hoje conhecemos muito mais sobre o assunto, e sabemos muito bem como construí-la seja em equipas reais ou virtuais. Esse é o meu trabalho de investigação e de formação dos líderes nas empresas, não apenas ao nível micro, mas ao nível macro, porque a cultura e a economia jogam aqui um papel crucial. Repito: sabemos hoje muito mais como produzir confiança e com ela conseguir mobilizar as pessoas e ultrapassar as novas pressões, nomeadamente a do distanciamento físico, pois a confiança permite-nos funcionar de forma fisicamente distante mas socialmente próxima.

Falaste na formação de líderes e tinha justamente pensado abordar o tema, porque a origem evolutiva da liderança é um tema recorrente do teu livro. O exercício do poder, a influência sobre os outros desenvolveram-se num contexto de proximidade, ou seja, tinham uma dimensão territorial. Quando os “territórios” que têm sido os locais de trabalho se pulverizam, que consequências isso tem sobre a liderança? Também pode ser “desterritorializada” e exercida à distância?
É novamente uma questão de confiança, que no caso da liderança ganha ainda maior acuidade. A confiança compensa a ausência física do líder, e é justamente quando ele está ausente que mais precisa da confiança. A investigação mostra que quando se confia num líder está-se mais disposto a perdoar erros momentâneos. Por isso, o exercício da liderança à distância exige que o líder seja capaz de produzir confiança, e há comportamentos e práticas que a produzem. Tenho isso descrito nos meus livros sobre o tema da confiança em particular no livro “O Fator Confiança”, todo ele baseado naquilo que a investigação nos mostra.
Como vimos, a confiança funciona à distância e tem um valor bioeconómico brutal. E agora a realidade veio dar ainda mais importância ao tema, que tomávamos muitas vezes por adquirido. Quando falta a confiança nota-se mais do que quando ela existe. Mas estou convicto que se compreendermos como é que o nosso “computador orgânico” funciona, qual é a filogenia e a ontogenia da confiança, saberemos como usá-la. Sem dúvida que os líderes precisam disso mais do que ninguém, sobretudo agora e no futuro que se avizinha. Aliás, o futuro já existe: é simplesmente o passado do que ainda há de vir; tal como o presente é o futuro do que aconteceu. Falta-nos distanciamento para olhar para estas coisas, para entender a mudança. Se pensarmos bem, a desterritorialização do trabalho pode ser vista como uma forma da desmaterialização mais geral que está em curso em muitos outros domínios, e isso já não é tão novo. Já aconteceu com o dinheiro, por exemplo, e não é mais nem menos com base na confiança que ele funciona como uma garantia simbólica à distância. Giddens estudou isso muito bem e aconselho a leitura dos trabalhos dele para percebermos melhor o que está a acontecer.

Por falar em mudança: durante centenas de milhares de anos, o nosso cérebro evoluiu para se adaptar a um ritmo de mudança praticamente impercetível à escala da vida humana. O ambiente em que evoluímos, do nosso ponto de vista, era estático. Há uns 250 anos, desde o início da Revolução Industrial, o ritmo de mudança acelerou, e hoje é exponencial. Alguma vez conseguiremos adaptar-nos à mudança exponencial?
Só posso dizer que não sei. E duvido estar cá para responder a isso. Acredito que a espécie vai-se adaptando mas talvez nem todos o consigam. Não foi sempre assim? Este tipo de upgrade leva muito tempo a acontecer apesar da ilusão do presente e dos meios de informação serem tão rápidos. Simplesmente não sei e esta é a minha melhor resposta.

Continuamos a evoluir por seleção natural? Que indícios temos dela? Não está completamente “abafada” pela evolução por via cultural, ou “afogada” numa população de quase 8 mil milhões de seres humanos?
Continuamos. Sem dúvida. Todos os dias. Aliás, curiosamente esse é o último capítulo do meu livro, que tem por título “E a evolução será que ainda continua?” Embora não pensemos nisso nem de tal tenhamos consciência, desde a forma como nos deitamos aos alimentos que consumimos, ao medo das cobras e das aranhas, passando pela importância do prestígio ou pela procura de cargos de liderança, tudo deriva da evolução que nos moldou a nós, às nossas mentes e às nossas respostas quotidianas. Isto mostra como a Evolução continua presente nas nossas vidas diárias e também como a sua compreensão nos pode ajudar a entender porque é que muitos dos nossos comportamentos atuais revelam um desfasamento entre o nosso cérebro, que foi esculpido num ambiente que tem mudado mais depressa do que nós próprios. A Evolução continua a “dar cartas”, desde a nossa sobrevivência à necessidade de movimentação, ao exercício físico e até à cosmética e à aparência, passando pelo tipo de líderes que escolhemos. O investimento nos filhos, seja em quantidade (como antigamente) seja em qualidade (como atualmente) foi sempre altamente revelador do modo como os pais estão biologicamente programados para amar a sua descendência incondicionalmente e tudo fazer por ela, porque são os filhos que transportam os seus genes; os filhos são os nossos genes a viajar no futuro. Por isso a Evolução também continua.
Talvez muitas pessoas não saibam mas calculamos que os nossos antepassados tinham de andar habitualmente qualquer coisa entre 20 a 25 km por dia, apenas para encontrar recursos e sobreviver ou para fugir aos predadores ou a salteadores e bandos errantes. Por isso, e ao contrário dos dias de hoje, o sedentarismo não era sequer uma opção, como é atualmente, por exemplo, decidir praticar natação, correr diariamente, andar de bicicleta ou inscrever-se num ginásio de fitness. Também a nossa alimentação atual reflete a nossa evolução e fá-lo de uma forma dramática. A preferência por gorduras e açúcares resulta do facto de durante muito tempo estes serem recursos escassos que, uma vez obtidos, nos davam uma maior capacidade de sobrevivência e de reprodução. Por isso, evoluímos para preferi-los porque eram raros e valiosos. Hoje em dia, a sua abundância e a facilidade de adquiri-los estão desfasadas do ambiente ancestral. A sua comercialização não faz mais do que explorar essa nossa preferência evolutiva resultando em inúmeras doenças bem conhecidas. O mesmo acontece com o jornalismo, que explora o nosso enviesamento negativo para os perigos. É que a nossa estrutura psicológica foi construída ao longo de milhões de anos em que os seres humanos aprenderam a avaliar o ambiente e a calcular os riscos que correm socorrendo-se de vários atalhos cognitivos. Um deles é a chamada “heurística da disponibilidade”, que consiste nisto: quanto mais fácil for recordar algo guardado na nossa memória mais provável é que julguemos que isso corresponda à verdade. Ora, não é assim. Mas quando somos bombardeados diariamente por um jornalismo focado nos acontecimentos e nas informações negativas, é natural que a nossa memória fique capturada por sentimentos também negativos que nos levam a sobreavaliar os riscos do atual ambiente evolutivo, e isto torna-nos ainda mais pessimistas. Se reparares bem, são os media que decidem todos os dias aquilo que nos deve assustar e colocar em alerta, aquilo de que devemos ter medo. Vê o que se passa com o COVID-19. Realisticamente não se trata de um vírus como o Ébola, que mata indiscriminadamente indivíduos de todas as idades. Todavia os media deliciam-se com o pânico que criam quando dizem que morreram 6 pessoas (omitindo que tinham todos mais de 80 anos e doenças crónicas, algumas muito graves). Porque isso não interessa. Não mete medo. Tudo isto, se quiseres e num certo sentido, continua a ser a Evolução a funcionar!

Uma pergunta para terminar: qual vai ser o tema do teu próximo livro, e para quando?
O meu próximo livro é novamente uma compilação de artigos já escritos, alguns já publicados e alguns inéditos, mas desta vez será em inglês porque quero chegar a um mercado maior; o nosso mercado de língua portuguesa faz um reduzidíssimo consumo de livros científicos (e até dos outros). Vai chamar-se “Human Affairs” e foi enviado a vários cientistas para estes darem a sua opinião. Está também em revisão científica e do inglês porque não é suficiente traduzir. Há muitas nuances na língua. Isso está a ser feito pelo Max Beiby, que é meu amigo e é o editor do blog “Darwinian Business” do Evolution Institute fundado e gerido pelo Professor David Sloan Wilson. Além da revisão científica, o Max vai também escrever o prefácio. Além disso, o livro já foi enviado para alguns notáveis no domínio versado como é o caso particular do Professor Robert Trivers ou do próprio filho do Hofstede e, entre outros, para o Professor Gregg Murray, que dá aulas de Ciência Política na Augusta University e é também editor do “Politics and Live Sciences”. Prefiro submeter-me a esta prova de fogo porque se passar no crivo deles e se se dispuserem a recomendar o livro, então acho que estou no caminho certo ao tentar ligar a psicologia evolucionista e a ciência política para procurar perceber melhor o comportamento humano.

Já agora, uma última nota: o livro será dedicado ao Professor Geert Hofstede e em homenagem a ele – ou mais corretamente, como se diz, in memoriam.

Entrevista ao Professor Doutor Paulo Finuras para a Revista LÍDER

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